Por que o mercado editorial é contra a taxação do livro?

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24 de novembro de 2021

Por que o mercado editorial é contra a taxação do livro?

Por Vitor Tavares, presidente da Câmara Brasileira do Livro (CBL) 

 

Acredito que as respostas para todas as questões estão nos livros. Há quem as busque no I Ching, na Bíblia, nas antigas enciclopédias. Livreiro que sou, para esta pergunta específica recorro a "O direito à literatura e outros ensaios", do mestre Antonio Candido, que recomendo. O texto é dos idos dos anos 1980, mas, como um oráculo, responde de forma divina ao que a nem todos é óbvio em pleno século XXI. 

O livro explica bem melhor do que eu, mas, em linhas gerais, o que Candido nos mostra é que a literatura é um direito humano, pois é ela quem garante a nossa humanização. E humaniza porque nos faz vivenciar diferentes realidades e situações. Afinal, o contato com a ficção/fabulação influencia no caráter e na formação dos sujeitos, na medida em que estimula e alimenta nossa imaginação, que é a essência da nossa humanidade – assim como o polegar opositor e a razão. 

Além de possibilitar o exercício de nos colocarmos no lugar do outro (no caso, personagens), a literatura incrementa nosso vocabulário, o que aumenta nossa capacidade de comunicação. E ainda nos leva a conhecer o mundo e sua(s) história(s). Tudo isso fortalece nossa capacidade de transformar nós mesmos e nossas realidades. 

Em resumo, para Antonio Candido, a literatura é um direito tão importante que se iguala às necessidades mais básicas de um ser humano. E, para garantir o direito de todos a ela, é preciso um acervo organizado, disponível e acessível a todas e todos, de todas as idades, cores, credos e orientações sexuais. É preciso também que esse acervo convide e seduza, possibilitando que as pessoas se formem leitoras e leitores.

O que Antonio Candido chama de literatura eu interpreto como livro. E entender este direito ao livro é a chave para a certeza de que a taxação não pode ser uma porta entre ele e os leitores. 

Muito antes de Candido traduzir brilhantemente tudo isso em palavras impressas, em pilhas de páginas (que puderam ser encadernadas, distribuídas, vendidas, compradas, presenteadas e, o mais importante: lidas), o argumento que possibilita o desenvolvimento dessa história já existia. Sempre existiu, com diferentes nuances e sotaques, nas mais diferentes realidades. 

E, para garantir que a versão brasileira dela pudesse circular por aí até hoje, alguns autores extrapolaram a literatura e escreveram importantes capítulos da realidade. Parte de um grupo de intelectuais, editores e escritores engajados em garantir mudanças lá pelos idos dos anos 1940, Jorge Amado, então deputado federal - além de autor nacional de maior prestígio internacional à época – é um deles. Ele apresentou no Congresso Nacional uma emenda que garantiu a imunidade de impostos para o papel utilizado na impressão de livros e jornais na Constituição democrática de 1946. 

Gosto de lembrar que tão atemporal e marcante quanto seus best-sellers são suas palavras à época: “Nossa emenda visa a libertar o livro brasileiro daquilo que mais trabalha contra ele, daquilo que impede que a cultura brasileira mais rapidamente se popularize, daquilo que evita que chegue o livro facilmente a todas as mãos, fazendo dele no Brasil um objeto de luxo. Quando tanto o livro escolar quanto o de cultura mais alta constituem necessidade de todos os brasileiros”.

A isenção do papel abriu caminhos. Uma vez mais acessível, ele ganhou força para carregar informações e opiniões para mais longe, na medida em que barateou o produto final - no caso, livros, jornais e revistas. Assim, camadas menos favorecidas da população puderam ter mais acesso ao seu conteúdo. Lembrando que tudo isso aconteceu em um país ainda fortemente marcado pelo analfabetismo. Naquele momento, a história começava a mudar.

A reforma constitucional de 1967 estendeu a imunidade ao objeto livro. E a Constituição de 1988 consolidou a jurisprudência que isenta o livro, ao estabelecer que é vedado à União, Estados, Distrito Federal e Municípios criar impostos sobre ele. E, mesmo quando surgiram contribuições sociais, como PIS/Cofins, a isenção foi conferida. A Lei nº 10.865, de 2004, reduziu a zero a alíquota de ambas nas vendas de livros. Era o direito à literatura e ao livro sendo respeitados. As consequências positivas não demoraram a aparecer. Entre 2006 e 2011, o valor médio de capa diminuiu 33%. E o número de exemplares vendidos ao ano cresceu 90 milhões. 

Em 2020, no entanto, o Executivo enviou ao Congresso o Projeto de Lei 3.887/2000, criando a Contribuição Social sobre Operações com Bens e Serviços. Uma vez aprovada, a CBS, que estabelece uma alíquota única de 12%, revogará artigos da lei de 2004, atingindo o livro. 

Trocando em miúdos: a reforma tributária ameaça tributar produção, importação e venda de livros. No caso da aplicação de uma alíquota de 12% de CBS nas vendas, estima-se que será necessário aumentar em 20% o preço final de capa, o que vai prejudicar o acesso à leitura justamente da população mais vulnerável. 

Não custa lembrar que, segundo a pesquisa Retratos da Leitura no Brasil 2019-2020 - realizada pelo Instituto Pró-Livro, em parceria com o Itaú Cultural, e aplicada pelo Ibope Inteligência -, hoje existe um enorme contingente de brasileiros das classes C, D e E que são consumidores de livros.  

Cabe aqui um parêntese para analisarmos mais atentamente esta espécie de álbum fotográfico da leitura no país, hoje em sua 5ª edição. Os dados de 2019 indicam que o Brasil tem cerca de 100 milhões de pessoas que leem, o equivalente a 52% da população. As estatísticas mostram também que 67% de nós não contaram com alguém que incentivasse a leitura. E que só 56% leram ao menos um livro, ou parte dele, nos últimos 3 meses. E a imagem pode surpreender dependendo da lupa pela qual se observam esses números.

Vejamos: em termos de porcentagens, é maior o número de leitores entre os que possuem Ensino Superior (68%). E em maioria eles são das classes A e B (67% e 63%, respectivamente), com renda familiar de mais de 10 salários mínimos (70%). 

Mas, focando em números absolutos, é preciso considerar que esses leitores são não estudantes (61,2 milhões), das classes C, D e E (70 milhões) e de renda familiar entre um e cinco salários mínimos (76,3 milhões).

Ah, os números... sempre eles. Segundo a Pesquisa Produção e Vendas do Setor Editorial Brasileiro, realizada pela Nielsen Book, com coordenação da Câmara Brasileira do Livro (CBL) e do Sindicato Nacional dos Editores de Livros (SNEL), em 2020, as vendas de livros no Brasil diminuíram 8,8% em termos nominais, somando R$ 5,2 bilhões, sendo R$ 1,4 bilhão relativos às aquisições governamentais em livros didáticos.

Se colocarmos na balança, constataremos que, com a aplicação da CBS sobre os livros, a arrecadação do governo federal giraria em torno de R$ 620 milhões. 

A taxação faria com que o governo arrecadasse mais, num primeiro momento, mas acabaria provocando aumento do preço de capa e, com isso, o que se canalizaria para os cofres públicos, certamente, não compensaria os prejuízos impostos à formação intelectual dos brasileiros. Sem falar que, olhando numa perspectiva de mais longo prazo, entre 2006 e 2020, o mercado registrou queda de 30% nas vendas, atingindo o menor patamar nesses 15 anos. Pergunto: é sobre um mercado em retração que se pretende aplicar uma nova taxação?

Deixando de lado a letra fria das leis e a objetividade dos números por um momento, recorro às bem traçadas linhas de nossos autores, na tentativa de traduzir o que isso significa. Se, como dizia o escritor e editor Monteiro Lobato, “um país se faz com homens e livros” (“...e ideias”, acrescentou o editor José Olympio, anos depois), que tipo de país tem em mente quem legisla hoje? Um deserto de homens vagando sem livros nem ideias? 

Sim, porque se hoje nos encontramos neste livro (eu escrevendo e você lendo) significa que tivemos direito e acesso à leitura para possibilitar que chegássemos até aqui. Um oásis para poucos, mesmo hoje, considerando que somos privilegiados, num país em que apenas 30% das pessoas têm a chance de comprar uma publicação. 

Pois imaginemos que a CBS seja aprovada. Que cenário teríamos? O aumento de custo que o imposto trará não tardará a atingir o consumo e, por consequência, investimentos em novos títulos. Já vimos este filme, inspirado em fatos reais vividos pelo mercado do livro em meio à crise econômica.

Desta vez, há agravantes. Afinal, entramos no segundo ano de pandemia. Se por um lado o amor ao livro ganhou força na quarentena, por outro, as medidas de distanciamento acabaram afastando o leitor das livrarias, que sentiram o baque.

Ainda de acordo com esse estudo, as livrarias exclusivamente virtuais tiveram aumento de 84% na participação das receitas das editoras. Já as chamadas livrarias físicas tiveram sua contribuição reduzida em 32% frente às vendas de 2019. 

Não por acaso, o número de lançamentos também foi afetado, já que são estas livrarias - fechadas por meses - as principais vitrines para novas obras, graças ao seu papel cultural e social. Ou alguém duvida de que elas são fundamentais para a descoberta de novos títulos pelo leitor e para o bom desempenho do mercado como um todo? 

Sem a possibilidade do encontro ao vivo entre pessoas e livros, para aquele momento de atração pelas capas e primeiras descobertas ao folheá-los, a queda de lançamentos chegou a 17,4% em relação ao ano anterior: em 2020, as editoras brasileiras produziram um total de 46 mil títulos, dos quais apenas 24% foram lançamentos. Os 76% restantes foram reimpressões. 

Menos livros em circulação significa restringir educação e conhecimento a todos, com a majoração do preço, a restrição é ainda maior para as classes menos favorecidas, o que só traz (mais) desigualdade. E o Brasil divide hoje com a Colômbia o 79º lugar do ranking do Índice de Desenvolvimento Humano (IDH). Neste ranking, os países mais bem posicionados são justamente os que registram o maior volume de aquisição de livros por pessoa, chegando a quase dez ao ano. Em nosso país, o consumo é inferior a dois livros por habitante/ano. 

Relatório recente da International Publishers Association revela que dar ao livro um tratamento diferenciado em termos de tributação é uma prática adotada em vários cantos do mundo. A alíquota zero predomina, por exemplo, na maioria dos países da América - exceto o Chile e a Guatemala. O mesmo acontece em regiões como África e Oriente Médio, assim como em países emergentes que traçaram e executaram estratégias de desenvolvimento, como Índia e Coreia do Sul.

Em economias mais desenvolvidas, há vários cenários. Na Europa, há desde casos de países em que o livro impresso não paga imposto, como no Reino Unido, a outros em que a taxa chega a 25%, a mesma que incide sobre outros produtos. Estamos falando da Dinamarca. Enquanto isso, França e Alemanha cobram um imposto sobre valor agregado inferior aos demais produtos: 5,5% e 7%, respectivamente. Em ambos a alíquota gira em torno de 20% para os demais produtos. 

Já nos Estados Unidos não há uma regra que valha para todo o território, mas alguns estados desoneram totalmente obras didáticas. É o que acontece em Minnesota e Massachusetts, por exemplo.

Voltando para o Brasil, estamos cientes da necessidade de reformas que visam à simplificação tributária. Mas é preciso que se considere, ao fazer as contas, que a imunidade não é um privilégio. Como vimos – ela é concedida em muitos países com base no princípio de que o sistema tributário não deve tratar igualmente setores econômicos desiguais. 

Ainda segundo a International Publishers Association (IPA), por sinal, o livro não é apenas mais uma commodity. Trata-se efetivamente de um ativo estratégico para a economia criativa, que facilita a mobilidade social, o crescimento pessoal e resulta, no médio prazo, em benefícios sociais, culturais e econômicos. 

Agora que estamos na mesma página na questão do livro como difusor da cultura, do saber e da educação, devolvo a pergunta: como ser a favor da taxação do livro?

 

*Este artigo foi publicado no livro: "Livros para todos: A construção de um país de leitores"

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