José de Souza Martins encontra Ugo Giorgetti

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4 de September de 2025

José de Souza Martins encontra Ugo Giorgetti

Por Liniane Haag Brum*

O “raro espetáculo de um homem pensando”. É assim que o cineasta Ugo Giorgetti define a aula de história política e social do Brasil ministrada pelo professor José de Souza Martins no Cemitério da Consolação, em 2011, e transformada por ele em uma série de cinco episódios. Com produção do Serviço Social do Comércio de São Paulo, o Sesc, os registros que originaram “Vestígios da Eternidade” foram feitos pela documentarista Paola Prestes, que trabalhou com Giorgetti. A série está disponível na plataforma do canal SescTV desde agosto de 2024.

O encontro entre o intelectual e o artista não aconteceu por acaso. Ugo Giorgetti conta que costumava ler a coluna quinzenal de José de Souza Martins, no Estadão. O sociólogo, por sua vez, assistiu ao documentário “Pizza” (2007) e ficou impressionado. O filme, uma coprodução entre a produtora de Giorgetti e a TV Cultura de São Paulo, aborda os paradoxos da capital paulista através de um mapeamento de pizzarias de São Paulo.

O primeiro contato pessoal entre eles aconteceu porque o Professor Emérito da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP bateu – literalmente - à porta da produtora de Giorgetti, querendo conhecer o diretor de “Pizza”. A partir de então, o cineasta passou a frequentar algumas aulas do professor Souza Martins na Universidade de São Paulo. Até que um dia o sociólogo anunciou: “Amanhã a aula é no Cemitério da Consolação”. Foi assim que a série documental começou a ser produzida.

“Vestígios da Eternidade”, a exemplo de outras peças documentais dirigidas por Ugo Giorgetti, é sóbria no que diz respeito aos procedimentos de linguagem. Uma das marcas estilísticas está na interferência do diretor a cada abertura de episódio. Todos os capítulos se iniciam com o cineasta comentando o que o espectador irá encontrar a seguir. Essas falas são breves e informativas, mas também subjetivas, uma vez que refletem a opinião de Giorgetti e não escondem os seus titubeios durante a gravação. O cineasta não aspira a ser um comentador neutro, ele é o artista Ugo Giorgetti que articula suas ideias ao pensamento do “seu personagem”.

Já nos primeiros segundos, o professor Souza Martins adverte: “Olha, não é necroturismo, é uma tentativa de usar o cemitério como um documento de história social e política, e aprender a explorar informativamente e interpretativamente o que o cemitério tem a dizer”.

Da Biblioteca Mário de Andrade, onde o jovem operário José tomou contato com os livros pela primeira vez, ao intelectual de primeira grandeza a quem foi outorgada a honraria de Personalidade Acadêmica 2025 do Prêmio Jabuti, a verve etnográfica e interdisciplinar sempre esteve presente e ajudou a consolidar estudo, pesquisa e docência: “Cemitérios podem ser visitados como se a gente estivesse numa biblioteca lendo um livro. Cada túmulo desses é uma página desse livro”, ensina o acadêmico Souza Martins, em “Vestígios da Eternidade”.

Quem conhece a obra do professor, ou frequentou suas disciplinas na Universidade de São Paulo, talvez perceba que a atitude de ministrar uma aula em um cemitério não esteja longe dos procedimentos exploratórios que utilizou ainda no início da carreira acadêmica, quando foi integrado ao estudo “A qualificação do operário na empresa industrial”, liderado pelo professor Luiz Pereira, a convite de Fernando Henrique Cardoso. Na ocasião, lhe coube o levantamento de processos nas fábricas, a interação com os operários e as entrevistas, ou seja, uma abordagem de campo que, posteriormente, ajudou a forjar a sua própria metodologia de ensino e pesquisa.

Com o distanciamento que só a passagem do tempo proporciona, foi em 2022 que Ugo Giorgetti retomou a aula de 2011 ministrada no Cemitério da Consolação. O trabalho de concepção e roteirização da série separou o material gravado por episódios que não possuem títulos. O primeiro trata da participação dos padres Idelfonso Xavier Ferreira e Amaral Gurgel no processo de independência do Brasil. O segundo examina o túmulo da Marquesa de Santos e faz uma reflexão sobre a condição da mulher no século XIX. O terceiro capítulo destaca dois personagens ligados à história da escravidão: Luiz Gama e Antônio da Silva Prado e, sucessivamente, há o bloco que descreve a elite intelectual brasileira, com foco em Eduardo Prado e Caio Prado Júnior. O quinto e último episódio é “onde se entrecruzam duas biografias inteiramente inconciliáveis, ou aparentemente inconciliáveis, a do professor, cientista, empreendedor e industrial Roberto Simonsen e a do professor emérito e escritor José de Souza Martins”, comunica Giorgetti ao espectador.

Em uma passagem em que se sobressai o esforço de conter a emoção, o professor José de Souza Martins revela, em frente ao Jazigo da família Simonsen que, ainda menor de idade, fora funcionário da Cerâmica São Caetano, do Grupo Simonsen. Foi assim que conseguiu ingressar no ensino formal: “Eles pagavam o curso. Minha mãe nunca teve escolaridade, meu padrasto era analfabeto. Então eles não sabiam nem o que era estudar. Quem via minhas notas, minha caderneta, era uma funcionária da fábrica designada pra isso, tinha vários moleques lá que estudavam”.

Os cinco episódios seguem a cronologia da aula original, ou seja, a série não opera inversões, nem interrupções abruptas no discurso do professor.
“Vestígios da Eternidade” é um documentário que convida à entrada na obra de José de Souza Martins, tanto quanto na lógica criativa de Ugo Giorgetti. Essa talvez seja uma série para quem encontra no pensar, um modo de diversão. Ou para quem vê no encontro de sensibilidades motivos para, indistintamente, aprender e se emocionar.

* Doutora em Teoria e Crítica Literária (Unicamp), é pesquisadora associada do Laboratório de Estudos Avançados em Jornalismo, da Unicamp, onde desenvolve o projeto de divulgação da pesquisa “Contra o apagamento – o cinema de não ficção de Ugo Giorgetti”, financiado pela FAPESP. É escritora, jornalista e docente.

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